10.4.07

A Controvérsia do Multiculturalismo

O artigo seguinte foi publicado na Folha de São Paulo, sábado, 7 de Abril de 2007

A CONTROVÉRSIA DO MULTICULTURALISMO

Antonio Cicero

[Descartes relativiza as diferentes culturas a partir de um ponto de vista aberto a todas elas]

EMBORA POUCO conhecida no Brasil, uma das personagens mais interessantes do nosso tempo é, sem dúvida, Ayaan Hirsi Ali. Tendo nascido em 1969 na Somália (onde foi, quando criança, submetida a uma clitorectomia), ela, ainda menina, emigrou com a família para o Quênia, onde estudou em escola de língua inglesa e, sob a influência de professores e colegas, acabou por se tornar fundamentalista islâmica.

Em 1992, tendo sido dada pelo pai em casamento a um parente que habitava no Canadá, Hirsi Ali passou -a caminho desse país- pela Holanda, onde pediu e obteve asilo político, aprendeu holandês, estudou ciência política na Universidade de Leyden e participou ativamente, por um tempo determinado, da política holandesa.

Em 2002, Hirsi Ali renunciou ao islã e se declarou atéia. Tendo, a partir de então, publicado inúmeros artigos, proferido conferências e participado de debates em que fez sérias críticas ao islã, e mesmo ao profeta Maomé e ao Alcorão, ela foi diversas vezes ameaçada de morte.

Hirsi Ali escreveu também o roteiro do filme "Submissão", sobre mulheres muçulmanas, de Theo Van Gogh, assassinado em Amsterdã por um radical islamista que, no peito da vítima, pregou com uma faca um bilhete em que dizia, entre outras coisas: "Hirsi Ali, você será despedaçada pelo Islã". Ela hoje mora nos Estados Unidos.

Em artigo que acabou provocando uma grande polêmica, inicialmente na internet e, em seguida, em vários jornais dos Estados Unidos e da Europa, o historiador e professor em Oxford Timothy Garton Ash descreve Hirsi Ali nas seguintes palavras, ao mesmo tempo irônicas e paternalistas: "Tendo sido na juventude, sob a influência de um professor inspirado, tentada pelo fundamentalismo islâmico, Ayaan Hirsi Ali é agora uma corajosa, franca e levemente simplória fundamentalista do Iluminismo".

A formulação de Ash implica que ela tenha simplesmente trocado de fundamentalismos e, no limite, que o islamismo equivale ao Iluminismo: convicção multiculturalista que reaparece adiante, quando ele afirma que, se o iluminista quiser convencer o islamista argumentando que a sua fé se baseia na razão, o islamista poderá responder que a dele se baseia na verdade: e ei-los empatados.

A tese de Ash é insustentável. Para comprová-lo, considere-se o ponto de vista a partir do qual ele está a descrever esse impasse. Necessariamente, trata-se de um ponto de vista exterior ao de qualquer um dos dois antagonistas; é um ponto de vista que, sendo sobre os antagonistas, nem se identifica com nenhum deles em particular, nem deixa de compreender cada um deles isoladamente e ambos em conjunto. Ora, esse é precisamente o ponto de vista do Iluminismo: o ponto de partida do pensamento moderno.

Montaigne, por exemplo, quando, na Renascença, compara favoravelmente os índios antropófagos brasileiros com os cristãos europeus, diz que podemos chamar os canibais de "bárbaros" "tendo em vista as regras da razão, mas não tendo em vista a nós mesmos, que os superamos em toda espécie de barbárie".

Em outras palavras, ele fala de um ponto de vista que é não só exterior ao da cultura dos índios, mas exterior também ao da cultura cristã em que fora criado: por isso ele é capaz de criticar essa cultura. E esse ponto de vista é, segundo Montaigne, o das "regras da razão", ou, simplesmente, o da razão.

Descartes apenas radicaliza esse ponto de vista, ao observar que "aqueles que têm sentimentos muito contrários aos nossos nem por isso são bárbaros ou selvagens, mas que muitos usam, tanto ou mais que nós, da razão [...] e um mesmo homem, com seu mesmo espírito, sendo nutrido desde a infância entre franceses ou alemães, torna-se diferente do que seria, se tivesse sempre vivido entre chineses ou canibais".

Descartes está aqui, nada mais, nada menos, relativizando as diferentes culturas, a partir de um ponto de vista que não pertence a nenhuma cultura particular, mas que pode ser aberto por e para qualquer ser humano pertencente a qualquer uma delas: o ponto de vista da razão, do Iluminismo, da modernidade.

O reconhecimento universal desse ponto de vista, que é logicamente exterior, anterior e superior a qualquer cultura ou religião particular, é a condição da coexistência pacífica de todos, num mundo cada vez menor. É por isso que Ash está errado, ao colocá-lo no mesmo nível que o ponto de vista de uma religião particular, tal como o islamismo.

10 comentários:

Anônimo disse...

De que forma seria possível a existência de "um ponto de vista exterior a todas as culturas", se a própria formulação de um tal ponto de vista se dá dentro e através de uma cultura? É o ser humano capaz de pensar fora de um complexo de valores e símbolos culturalmente determinado? Ou seria a "modernidade" uma busca, frutífera ou não, da alteridade no seio de cada cultura, uma auto-transcendência da matéria cultural, em vez de uma "supra-cultura"? E não seria mesmo esse conceito de "modernidade" uma construção local, meramente contingente? Não sei, não disponho de ponto de apoio para conhecer tais respostas. Mas talvez possamos sê-las.

Naeno disse...

FAMÍLIA BRASILEIRA

Uma família típica brasileira
Adeptos de brasileiros confessos,
Vêem na Amazônia o pulmão do mundo
Nas Minas Gerais, o ferro
Que construiremos andaimes
Para chegarmos ao céu.
Uma família portuguesa,
Uma porção de índios, no kuarupe,
O vencedor leva um açoite,
Um tronco cortado às vésperas.
Cultuam o estalos de não poderem
Pagarem uma cerveja nos domingos,
E misturam cachaça com qualquer coisa,
E bebem erguendo taças até os olhos.
Todos os finais de semana lavam
Com shampoo para carro novo,
O velho Fiat cento e quarenta e sete,
Da primeira levada construída,
Meio de transporte, carro italiano,
Com adesivo do Fiorentino,
Um carro todo italiano.
Nele vão à praia, e já levam tudo pronto,
O que é quente ou frio vai no isopor,
O que nem é quente nem frio,
Vai amarado encima, no bagageiro,
Sem cuidados, com o frio ou com o calor.
Uma família brasileira, vive dessas besteira.
Eu vi o Passaporte do Paulinho Assunção,
Será que ele fazer unas compras em Assuncion
Uma família brasileira típica,
Vestido em típicos trajes japoneses.

Um abraço
Naeno

Anônimo disse...

Oi, Antonio.

Ainda estou sem resposta, mas na boa. Talvez a pergunta seja até um tanto utópica.

Já quanto a pergunta do Lucas, acho que o tal ponto de vista aberto a todas as culturas, seria um ponto de vista construído a partir da vontade própria de se ter essa abertura, despir-se das cascas, das castas, das casas. Andar nu de idéias formatadas. Pensar que um parafuso pode não servir apenas para parafusar. Enfim, dá mais uma rodada de chopp! Um beijo, obrigada pelo link
;)

Anônimo disse...

Lucas, pena vc não ter deixado rastro (e-mail, link).

Acho que jamais poderemos provar que fora de uma cultura qualquer, formulações (de valores, símbolos, signos) não se tornariam imediatamente em cultura.

Mas não acho impossível esquecermo-nos de "parâmetros", se quisermos.

Qualquer pessoa, sentindo-se livre em seus "julgamentos" ou obsrevações, pode, por exemplo, observar a igreja católica com uma ruína da religião moderna, e a estátua da liberdade como concreto puro, quando sabemos que a liberdade dos/ nos EUA depende de um "financiamento em cadeia humana", e aí ela se torna o seu oposto significado: a taça moderna de um capitalismo decadente

É, é uma lástima. E não se parece com o que chamamos de "verdade", não é?

Será que o ser humano pensa MESMO dentro de um complexo de valores, ou é impelido a isso?

Antonio Cicero disse...

Caros Lucas e Ana,
como o comentário do Lucas me parece condensar as objeções ao meu artigo, resolvi publicá-lo na postagem principal de hoje (12/04/2007), junto com a minha resposta.
Abraços,
Antonio Cicero

Lucas Nicolato disse...

Ana, eis o meu rastro.

Jane Malaquias disse...

Acho que os meios acadêmicos não sabem lidar com a paixão.Nunca tiveram o seu na reta e por isso discutem o destino da humanidade como se fosse um jogo de xadrês, uma ginástica mental.
Trata-se de uma grande guerra, o território a conquistar é o coração não o cérebro.

JIMMY AVILA disse...

Sou pesquisador e estudante do Multiculturalismo, além disso fui cristao praticante por alguns anos.
A. Cicero é um homen culto o suficiente para lembrar da advertencia de GEORGE STEINER
O humanismo nao Humaniza
Como criticar o"fundamentalismo" se nos vivemos a RELIGIAO do consumo ??

JIMMY AVILA disse...

E o fundamentalismo consumista??
as humanidades nao humanizam, como diria GEORGE STEINER

Antonio Cicero disse...

Caro Jimmmmmm,

Se o humanismo -- ou as humanidades -- não humanizam, o teísmo des-humaniza.

Eu não sou consumista. Salvo engano, você é anti-consumista. Nenhum de nós dois está sendo ameaçado de assassinato pelos adeptos da religião do consumismo, que antes nos ignoram. Logo, os consumistas não são intolerantes, como os fundamentalistas de algumas outras religiões. Ora, sou a favor da tolerância religiosa em relação às religiões tolerantes. Só a razão é absoluta.

Abraço,
Antonio Cicero